E mesmo que eu ande...

Hoje eu andei pelo vale da morte
Não haviam só mortos, mas vivos também
Pessoas jogadas à própria sorte
Rostos tranquilos e um solene desdém
As pessoas regozijavam-se
Nem se preocupavam
Havia comércio, vai-vem dos moradores
Ruas, passavam alguns automóveis

No entorno daquela grande vala,
Mais acima, grama alta, animais e árvores
E por todo lado, corpos
Vivos e mortos
Era um belo dia de Sol
Céu azul, poucas nuvens
Impecavelmente brancas
O lugar era simples com construções e moradias organizadas
Muitas pessoas com roupas e outras uniformizadas
Nada amistosas, se pudessem também me matavam
Minha alma, objeto de negócio
Moeda de troca
Triste realidade
Dos ofícios, o ócio

No centro do pavoroso bairro
Abaixo do nível das ruas
Eis o comprido córrego
ornado de azulejos brancos  
cruzava toda aquela região
Separando em duas:
De um lado céu, do outro inferno;
sim e não;
luz e escuridão;
vivos e mortos

Escadas também azulejadas, possibilitavam-me a aproximação do córrego
Não se via água pura, muito menos com barro
A cena que vi me causou espasmo:
Um rio de sangue por ali passava
Corpos boiavam, leves e quietos
Outros pesados imersos na rubra eternidade como dejetos
Moribundos nas escadas;
mortos nas calçadas
Houve uma chacina
Mas ninguém se importava
Parecia que nada havia acontecido
Teria sido um suicídio coletivo?

Alguns tentavam reanimar os mortos
Parentes inconsoláveis...
Numa loucura horrorosa
Tentavam desunir o inseparável,
trazer do além alguém de forma penosa

A vida é tão banal…
Pouco se preserva
Assim o bem perde para o mal
Contudo a morte é levada muito a sério!
Depois da morte, há reflexão
Oras… Agora já é tarde!
Por que não cuidar enquanto há vida,
para que tranquila seja a consciência na hora da partida?
Oh, vida banal… Sem valor
Preferem a paixão ao invés da razão:
Atraem para si uma ressaca alheia a dor

No vale da dor, do descaso e da agonia
Eu tive medo, é claro!
Medo de ficar assim, um dia
Não só dos corpos cobertos pela morta água vermelha,
mas dos vivos, que se comprazem com ela;
Medo...
Do ser animado;
do humano encarnado;
daquele que trai até o diabo
Medo eu tive sim…
Pois não encontrei isto neles
Foi o que mais me deixou apavorado
E que intrinsecamente vi o que sou
A imagem e semelhança do Criador
Ser humano…
Nós quem erramos, ou Ele quem errou?

Não tive pena de ninguém
Mas isso não faz de mim uma pessoa fria, má
Ou sequer inclinado a óbitos
Geralmente sofremos, não pelo próximo
Mas por nós mesmos
O pavor em cair naquelas águas vermelhas
Me tornar um deles
Não poder mexer os braços
Nem pernas
Nem gritar por socorro
Pois não há
Não há vida
Muito menos bondade
Nos empurram ainda mais na descida
Alguns ainda dizem ser caridade

Muito me vi ameaçado
Parecia que alguém me perseguia
Ora me olhando de lado
Ora me encarando ao longe
Como que vindo das matas,
vindo das casas, ou do mar de sangue
Eu tinha de sair dali
O insólito, o esquisito
Como uma mosca, eu tinha de fugir
Para longe das carnes ao molho de vinho tinto
Eu queria, mas não sabia pra onde ir
Poderia eu me perder no caminho
Ou dar brechas para algum psicopata
O que fazer? O que pensar?
Como um lugar desses deixar?
Nao sei… Sinceramente!
Mas me pergunto: como é que eu fui parar lá?

“E mesmo que eu ande pelo vale da sombra e da morte”...
Desculpe-me, Senhor
Eu temerei sim a todo o mal
Eu sei o quanto é horrível o vale
E quanto vale a vida
Além do mais,
eu sou frágil demais
E vou além:
Aqui vivo ansiando a hora da partida
Amém!

Comentários

  1. A vida é uma linha.
    Pode ser reta, torta, partida, fechada, aberta...
    Mas ela nos pede que vivamos.
    Dentro da banalidade dos pensamentos e frivolidade dos desejos, ela é única.
    As lembranças é o que fica, e delas são os que se foram.
    Nós estamos para da vida viver.
    O que temos para hoje, viver!

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